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As raças de cães que nos definem

Fonte da imagem: João Miguel Saturnino
Associação de Criadores de Rafeiro do Alentejo

 

O que é uma raça canina? A pergunta parece simples, mas tem a sua complexidade. A investigadora Carla Cruz, com vasto trabalho acumulado sobre recursos animais caninos, gosta de contar uma história paradigmática. “Quando estive no Cazaquistão, havia lá cães que, sob a designação internacional, seriam reconhecidos como Cães Pastores da Ásia Central. Os cazaques, porém, designam-nos como Kazakhs Tobets, a raça nacional de cães de gado”, conta. “E, no entanto, se eu trouxesse aqueles cães para Portugal e ignorasse pequenos aspectos distintivos, como as orelhas cortadas, estou certa de que ele passaria como Rafeiro do Alentejo ou alguns exemplares seriam confundidos com o Cão de Gado Transmontano. Na verdade, ‘raça’ tem na base questões culturais.”

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) não tem mesmo dúvidas em classificar o conceito de raça como um termo cultural e não técnico, na medida em que é utilizado como mecanismo de triagem em funções de características externas identificadas por observação visual e por uma aceitação cultural ou geográfica dessa identidade separada. “Em todo o mundo, há fronteiras políticas ou culturais a separar cães que, na essência, são iguais”, diz Carla Cruz. “Na transumância interfronteiriça, por exemplo, promovem-se contactos do gado e, naturalmente, os cães de gado que os acompanham trocam material genético entre diferentes populações, ajudando a uniformizar os tipos. Mas isso não significa que o conceito seja inútil.” Em última instância, o património definido por raças de cães, vacas ou ovelhas ajuda a contar a história de uma região e do seu uso dos recursos genéticos disponíveis.

Em Setembro de 2015, o Clube Português de Canicultura (CPC) reconheceu provisoriamente o Cão do Barrocal Algarvio como a 11.ª raça canina portuguesa. Onze anos antes, o Cão de Gado Transmontano e o Barbado da Terceira tinham-se juntado a essa lista exclusiva de recursos autóctones reconhecidos e diferenciados, com estalões publicados (o protótipo racial, ou seja, a descrição do exemplar ideal de cada raça).

Para trás, ficavam longos processos de averiguação e estudo, de visita aos locais onde existe criação, de reconhecimento das populações existentes num contexto geográfico e cultural específico e de presença de características morfológicas distintas das de outras raças semelhantes. O processo é meticuloso e visa garantir que uma nova raça terá sustentabilidade e uma base genética suficiente para vingar.

No caso do Cão do Barrocal Algarvio, a respectiva Associação de Criadores encomendou um estudo genético à investigadora Ana Elisabete Pires, que recolheu amostras de pêlo de alguns animais considerados à partida como muito típicos da raça que se estende por todo o barrocal algarvio, a sub-região calcária do Algarve que liga a serra ao litoral. “Pediram-nos que fizéssemos o genótipo de alguns indivíduos não aparentados entre si e, como eu já tinha a base de dados de representantes das raças caninas portuguesas, utilizei 19 marcadores moleculares (microssatélites) diferentes, percebendo rapidamente que este cão se distinguia das raças já existentes em Portugal”, diz esta especialista colaboradora do Grupo de Biologia Molecular do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária. Na memória colectiva do Algarve, este cão sempre se deu bem com os barrocos de alguma altitude e tem uma longa história de utilização nas matilhas de caça. “O genótipo traçado revelou de facto um cão isolado dos cães tradicionais da Península e muito mais próximo da raça Saluki, proveniente do Médio Oriente, do que de qualquer outra da base de dados. Pode ter sido essa a origem do cão, num dos movimentos de migração do Oriente para esta região.”

Suportada por esta análise genética (e apesar de alguns sobrolhos levantados por parte da comunidade cinológica portuguesa), a raça foi reconhecida para alegria de Rogério Teixeira, o presidente da Associação de Criadores. “Foi um esforço de muitos anos. Tivemos de procurar alguns exemplares que ainda pudessem constituir linhagens diferentes e, a partir daí, desenvolver um programa de selecção e apuramento genético”, diz. Em meados do século XX, haveria cerca de trinta animais contabilizados desta raça, mas hoje já serão três mil, provando igualmente a utilidade do Cão do Barrocal Algarvio para funções de caça de pequeno porte. “Na caça ao coelho, eles são muito eficazes e suportam bem dois ou três dias de esforço contínuo”, diz Rogério Teixeira. “No passado, os criadores ‘eliminavam’ os cães de pêlo claro e ficavam com os de pêlo escuro por motivos muito práticos – o pêlo escuro facilita a camuflagem do animal no ambiente em que caça. É um cão muito apreciado no Algarve.”

As questões funcionais são o verdadeiro motivo para a sobrevivência de algumas raças e para a extinção de outras. Naturalmente, na longa história humana, algumas raças foram capazes de encontrar diferentes valências e antigos cães de trabalho como o Caniche ou cães rateiros como o Yorkshire Terrier são hoje celebrados como cães de companhia ou de desporto. Em Portugal, porém, quase todas as 11 raças reconhecidas pelo CPC mantêm a função original que as tornou úteis nos contextos geográficos e culturais em que se desenvolveram, com excepção talvez do agora famoso Cão de Água Português, até por força da exposição mediática produzida pela oferta de um exemplar a Barack Obama por parte de um senador norte-americano.

Originalmente, seria um animal que acompanharia os pescadores nas embarcações de pesca no litoral, ajudando a apanhar objectos, eventualmente a detectar cardumes próximos da proa do barco e até a comunicar com terra. Com novos hábitos culturais e piscatórios, essa função tem sido perdida, mas o Cão de Água Português mantém a sua popularidade entre criadores e amantes de animais como animal de companhia e desporto.

“Há um motivo fácil de compreender para a ausência entre nós de cães de companhia”, diz Carla Cruz. “O país sempre foi pobre, pelo que era inviável o luxo de ter cães de colo ou de companhia, como nas cortes do Renascimento. As raças de cães que vingaram entre nós foram os cães de pastoreio, que conduzem e levam rebanhos, como o Cão de Fila de São Miguel, o Cão da Serra de Aires ou o Barbado da Terceira; os cães de gado, como o Cão de Castro Laboreiro, o Cão de Gado Transmontano, o Cão da Serra da Estrela ou o Rafeiro do Alentejo, que defendem o rebanho dos predadores, os cães de caça, como o Perdigueiro Português, o Podengo Português ou o Cão do Barrocal Algarvio e o Cão de Água Português. Agora, porém, muitas destas raças ganham popularidade na Europa e nos Estados Unidos como cães de companhia e de desporto.”

Oito das onze raças reconhecidas em Portugal são igualmente reconhecidas pela Federação Cinológica Internacional (FCI), sediada na Bélgica. Algumas das mais emblemáticas raças autóctones, como o Cão da Serra da Estrela ou o Perdigueiro Português, foram reconhecidas há largas décadas. Outras, porém, resultam de processos mais recentes. A FCI exige linhas de sangue independentes até à terceira geração, admitindo alguma consanguinidade apenas entre animais da mesma linha, mas não entre linhas. Cada linha tem igualmente de dispor de um número mínimo de fêmeas e machos. São igualmente requeridas provas de funcionalidade e garantias de viabilidade da raça e programas de despiste de problemas de saúde comuns na raça para assegurar a saúde a prazo destas populações. “Juntando estes critérios, percebe-se que a malha é apertada e exige quase mil animais para reconhecer uma raça”, diz Carla Cruz. “É um trabalho de longo prazo que requer planeamento e compromisso por parte dos criadores.”

Um pouco por todo o país, a vasta comunidade cinológica readquire a paixão pelos cães que nos definem enquanto cultura e envolve-se em concursos e projectos de criação. O processo do Cão do Barrocal Algarvio expôs a possibilidade de, em locais remotos do território, ainda subsistirem populações de cães passíveis de reconhecimento. Na verdade, o cão, nas suas múltiplas morfologias e funções, recorda-nos uma velha história de domesticação da paisagem e de tudo o que nela está contido – um livro de carne e osso sobre o que fomos e como evoluímos. “Falta talvez uma última evolução”, brinca Carla Cruz. “Ainda teremos de evoluir mais e valorizar o cão como recurso autóctone, dando-lhe o crédito e o reconhecimento que ele merece.”


Fonte: National Geographic Consultar fonte
Data de publicação: 21/05/2018 13:43